quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

A arte de olhar

Meu filho, cuja sensibilidade para captar imagens é extraordinária, costuma dizer que fotografia a arte de eternizar o segundo. Alguns fotos têm inegavelmente esse destino histórico: quem não eternizou a guerra do Vietnã pela imagem de uma menina correndo com o corpo queimada e o rosto de pânico? Outras imagens capturam segundos individuais, que entram para a pequena - contudo enorme - história cotidiana das pessoas comuns: casamentos, batizados, aniversários, férias... instantes imortalizados pela imagem. Gosto de fotografias, a bem da verdade, tenho centenas de álbuns em casa. Estão todos um pouco jogados no quarto de fundo. Às vezes, vou lá furtivamente e dou uma olhadinha no passado. Sempre que vou, prometo que no próximo final de semana arrumarei tudo: catalogarei todas as fotos, colocarei em ordem cronológica, escreverei alguma coisa atrás para lembrar de onde foi tirada - é, porque na hora de tirar eu juro que lembrarei sem recado, mas depois -... bom, fim-de-semana que vem... quem sabe? Além de elas estarem em álbuns, também andam espalhadas em porta-retratos na minha sala e no meu quarto. Faço um rodízio de vez em quando para não abusar (será normal isso ?!). Mesmo que não gostasse de fotografias, acabaria admirando a arte por influência do entusiasmo de meu filho... mas gosto da prática e do produto. O que me aborrece, às vezes, é a disseminação das máquinas digitais e a banalização das poses. Preste atenção: elas estão em todo lugar, ganharam uma popularidade tremenda. E, como dispensam o custo da revelação do antigo filme a rolo, são engatilhadas como metralhadoras... clic, clic, clic... As adolescentes adoram, não vivem sem essas máquinas pós-modernas que fotografam, armezanam e apagam imagens com uma velocidade vertiginosa. São práticas, admito. Mas tiram a poesia do olhar. São a versão "fast-food" para a arte da fotografia. Antes, corrijo, para a arte do olhar. A facilidade dessas máquinas faz as pessoas verem o mundo através de uma telinha em que é possível dar o zoom. Acho que alguns de nós andam tão absortos com a engenhosidade das câmeras digitais que pouco prestam atenção ao mundo real que há do outro lado. Recentemente, fui a São Paulo com um amigo. Foi uma viagem maravilhosa, uma imersão cultural: museus, orquestras, teatro. Passeios inesquecíveis, paisagens inesgotáveis. No primeiro dia, esquecemos as máquinas (no plural mesmo, cada um tinha a sua propriedade), mas só percebemos no retorno ao hotel; lamentamos, afinal tantas imagens haviam se perdido... No dia seguinte, levamos as duas. E registramos muitas cenas, mais de mil, sem hipérboles. E assim aconteceu no dia seguinte. Tenho várias imagens da minha viagem a Sampa: só paisagens, paisagens e gente, só gente, de perto, de longe, naturais, posadas, sérias, engraçadas. De vez em quando, olho-as no álbum. Saudosismo romântico (Ah que saudades que tenho...). Mas confesso: a imagem que permanece na minha mente como a mais intensa daquela viagem não foi eternizada por nehuma foto. Perto da Estação da Luz, entre o Museu da Língua Portuguesa e a Pinacoteca (amobos os prédios devidamente enquadrados na telinha), eu vi uma mulher dar à luz. No meio do asfalto, cercada de alguns policiais e de muitos curiosos, uma mulher negra, sem-teto, sem-chão, sem-nada, paria. Uma criança insistia em nascer. Meu amigo apressou-me, queria ainda ver outra exposição. Eu parei, extasiada diante daquela imagem... e, num lampejo, sendo meio que puxada pelo amigo, olhei mais uma vez e vi a criança nascer. Foram segundos eternizados na minha memória. Naquele momento, eu sabia, acontecera o mais formidável espetáculo que iria ver naquela cidade aqueles dias. Uma mulher pobre pariu no asfalto. Emocionada, lembrei um poema de Drummond - A flor e a náusea- em que ele fala da dureza do asfalto e das flores que insistem em nascer quebrando o concreto. No versos do poeta mineiro, tudo era metafórico, falava-se em linguagem cifrada dos regimes totalitaristas e da esperança de redemocratização. Ao ver a mulher parindo, os versos tiveram um sentido particular e eternizaram o que eu sentia. "É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio". Pronto, a imagem existe na minha mente límpida e com legenda. Não foi necessário tirar uma fotografia.