domingo, 28 de janeiro de 2007

Ócio e caos: lições de física

Vejo o milagre da multiplicação da louça suja acontecer na pia da minha cozinha...Ah! Como deve ser bom viver no que os italianos chamam de “dolce far niente”. Como parece mais fácil deixar as coisas acontecerem. Como é mais cômodo o não: não se desgastar, não se envolver, não fazer. Deixar as coisas seguirem seu rumo e abraçar a lei do menor esforço... Tudo conspira a favor disso: o tempo é pouco, o cansaço é muito, a luz fascinante do prazer fácil e efêmero nos atrai. É preciso coragem (e muita) para vencer tudo isso e enfrentar o fluxo do comodismo. Há muito tempo – talvez na minha Idade Média -, aprendi, em uma aula de Física, o conceito de entropia, que é mais ou menos assim: tudo caminha naturalmente para o caos e é preciso gastar energia para manter a ordem. Quando aprendi isso – se não for bem assim, a culpa não é do meu professor, mas da minha subjetividade -, jamais imaginei metaforizar a situação. Mas hoje vejo que a analogia é óbvia e inevitável: a tendência natural é abandonar-se e, se não quisermos pagar o preço do caos que vai se instalar, devemos (ah! como isso é difícil e exaustivo e desumano e desinteressante) gastar nossa preciosíssima energia! Não é muito mais fácil deixar o copo sujo no lugar mais próximo à nossa mão? Por que então preciso deixá-lo na pia e (pior!) lavá-lo?! Não é muito mais fácil bater papo, ouvir música, não fazer nada em de (argh!) organizar a papelada, ir ao banco, arrumar o guarda-roupa? Não é muito mais fácil dormir do que do que ir ao supermercado e enfrentar aquela maratona prateleira-carrinho-esteira-carrinho-carro-carrinho-prateleira? Por que, então, temos de lavar louça, estudar, trabalhar, se há tantas formas mais prazerosas de gastar energia?! Porque não queremos o caos! Definitivamente, não queremos o caos: o descontrole sobre nossa vida, a desordem confusa e aparentemente irreversível não nos interessam. Se não o queremos, cabe a nós evita-lo, gastando energia com tarefas cuja execução é um exercício de superação do tédio! Dentro de minha estreita e superficial lógica, penso que é mais fácil manter a ordem do que consertar o caos! Vou à pia, não me resta alternativa. Minha argumentação me convenceu...

domingo, 21 de janeiro de 2007

Crise zodiacal, sem Prozac

Apesar da formação cristã-católica, costumava, às escondidas, consultar o horóscopo diariamente. Abria discretamente o jornal e lia o que o dia reservava para os nascidos sob o domínio de sagitário. Se alguém a flagrava , disfarçava com um ar de desdém: “Eu lendo horóscopo? Imagina. Vocês não me conhecem.! Estou vendo os quadrinhos!” Mas lia. E no fundo, achava que aquilo não era assim tão pagão. Na verdade, via semelhanças entre o que o signo apregoava e seus gostos e ações. Semelhanças demais para serem meras coincidências. Fosse o tempo medieval,merecia a fogueira dos hereges... Achava o máximo ler, nas revistas dos salões de cabeleireiros, as características da mulher de sagitário: livre, independente, alegre e cativante. Gostava especialmente quando a definiam como uma mulher de “raça apurada”. Com o tempo, as previsões zodiacais passaram a nortear suas decisões mais sérias. “O horóscopo, uma taça de vinho, uma decisão tomada”. Simples assim.

Um dia – daqueles que começam traiçoeiramente comuns como todos -, um colega comentou que gostava de astrologia e que fazer mapas astrais era a sua mais atual terapia. Ela olhou e silenciou: a sala estava cheia demais para se comprometer. Mais tarde, na primeira brecha em que se encontrou com o colega, pediu-lhe, assim-como-quem-não-quer-nada, que lhe fizesse seu mapa “astrológico, ah! Não... astral. Não entendo mesmo dessas coisas...”. Ele solicitou os dados precisos do seu nascimento. Ela recorreu à mãe. A mãe recorreu à sua sempre boa memória. Elas confirmaram na certidão. Dia 21 de dezembro, às sete da noite. Último decanato de sagitário. Repassou os dados ao amigo, mas, antes, consultou a previsão para o seu signo naquele dia. “Você poderá ter a sua vida transformada em função de uma notícia. Prepare-se.” Teve calafrios... Ou aquilo era um mau presságio ou ficaria resfriada. Por precaução, tomou uma aspirina.

Outro dia – daqueles que parecem como todos os outros -, o colega a procurou com o trabalho realizado. Orgulhosamente segurava uma pasta, com desenhos enigmáticos e todo o tipo de informação zodiacal: humor, amor, trabalho, família, destino, essas coisas... Antes de lhe entregar a pasta, entretanto, ele comentou displicente: “Nossa! Por pouco você seria uma sagitariana.” Como assim? Seria? O pressuposto disso é que ela não era! Fingiu indiferença. Correu para a sua mesa e olhou o laudo. Não foi difícil ler a palavra Capricórnio. Não, não podia ser... devia ser um erro. Respirou fundo, procurou o colega, confessou, envergonhada, a sua perplexidade. Sempre se julgou uma “raça apurada”, sempre agiu e viveu sob a influência de sagitário. Ele não podia agora, logo agora em que ela entrava na crise dos quarenta, desmoronar sua identidade... Isso ela não admitia! Ele calmamente lhe explicou que a regência dos signos mudava às dezoito horas e quarenta e cinco minutos do dia 21 de cada mês. Incrédula, ela tentou usar a lógica: oras, o dia acaba à meia-noite para todos, é uma convenção cultural universal. Ele disse que os astros têm suas próprias convenções. Ela sentiu o mundo desabar. Sequer se lembrava da representação de Capricórnio: era um unicórnio ou coisa parecida?... Ah... já estava contabilizando o valor das sessões de terapia: com certeza gastaria uma fortuna para se ressignificar. O colega voltou e disse: “Não sei como você não percebeu. É claro que você é capricorniana!”.

Sozinha em sua sala, acessou um site de busca, digitou “mulher de capricórnio” e clicou enter. Apareceram dezenas de páginas. Abriu uma qualquer, não estava em condições de decidir.Começou a ler timidamente as palavras. Mulher forte e segura, com grande dose de sensibilidade. Isso a animou. A mulher capricorniana é uma grande organizadora e dá muita importância à carreira, sem negligenciar a família. Isso definitivamente era bom! Ela descobriu em segundos que era uma excelente conselheira e tinha muito senso prático. Era segura e tinha uma auto-estima equilibrada. Uau! Essa era ela! Bem que percebia que aquela coisa de sagitariana era um pouco forçada... bem que percebia! Quando leu que ela era empreendedora, pragmática e capaz de agregar pessoas a seu redor, sorriu! Não precisava mais de terapia! Aliás, as capricornianas não precisam disso! Levantou, pegou a bolsa, rodopiou pela sala. Os colegas, boquiabertos, ouviram-na dizer que sairia mais cedo. Ela saiu radiante. Foi ao shopping mais próximo e comprou aquela sandália lindíssima-carísssima em que estava de olho há dias: iria sobrar dinheiro com a dispensa da terapia. De salto alto,tomando um capuccino, olhou ao seu redor. Era uma mulher bem resolvida. Era um capricorniana. É claro. Como não percebeu isso antes?...

domingo, 14 de janeiro de 2007

Tangos

De repente, todos na minha família resolveram se interessar em fazer aula de dança de salão. A idéia é empolgante: a atividade estimula a socialização, trabalha músculos e o sistema cardio-respiratório, desenvolve a coodenação motora, é divertida... O difícil parecia ser compatibilizar o horário de todos e a modalidade. Meu pai tem mais inclinação para o bolero, minha filha prefere samba de gafieira, minha irmã quer forró... O horário ainda é um desafio, mas, pasmem, existe uma dança que todos querem aprender: Tango! Na hora dos ajustes, é claro que também me empolgo: quero dançar tango! Vem de imediato à minha mente a famosa cena de Al Pacino no fime Perfume de mulher (é de 1992, se você não o viu, não perca!) e suspiro enquanto comento com os outros a minha lembrança. Um amigo chileno reage: "Por que toda mulher gosta deste filme?". Na hora, rebato: "E por que todos os homens gostam de 'O poderoso chefão'?". O assunto se desviou e esquecemos o tango. Em casa, à noite, ligo a TV depois de dançar com amigos (é bom já ir treinando...) e, surpresa, vejo a figura impagável do oficial cego Frank Slade na minha telinha! Coincidência, o filme estava passando em um desses canais a cabo. Assisti como se fosse a primeira vez. Emocionei-me com as cenas, os temas ligados à superação e à amizade, as mensagens de ética e dignidade. Mas, confesso, continuo achando a cena do tango incomparável. Por que as mulheres gostam tanto desse filme? Bom, meu amigo chileno, vou falar por mim. Gosto da maneira como o personagem do Al Pacino enxerga (ainda que cego!) as mulheres. Ele as idolatra, as adora. É capaz de viver e morrer por elas. Com certeza, é um excelente amante! Dentro da casmurrice do personagem, a docilidade com que ele se dirige às mulheres (todas!) é comovente. Mas é uma docilidade por vezes agressiva, libidinosa! Na antológica cena, ele dança tango com uma jovem que estava sozinha em um restaurante à espera de um namorado que, parece, a negligenciava. O tango redimiu aquela mulher. Ela é outra depois da dança. E quem a refaz? Frank Slade/Al Pacino! Acho que todas nós sonhamos com um homem que nos faça sentir vivas, sedutoras, seguras, atraentes, perfeitas... Um homem paradoxalmente sensível e rude, que nos tome nos braços e nos ajude a viver. Como diz o protagonista, a vida é como um tango, se você erra um passo, você simplesmente continua... Ah! Ia me esquecendo: além de tudo, é um sujeito leal, honesto com seus sentimentos, por isso jamais fingiria ser o que não é só para conquistar uma mulher. Bom... acho que é por isso, sobretudo, que as mulheres gostam do filme. E os homens... o que os leva ao Poderoso chefão? Será também o Al Pacino?...

quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

A arte de olhar

Meu filho, cuja sensibilidade para captar imagens é extraordinária, costuma dizer que fotografia a arte de eternizar o segundo. Alguns fotos têm inegavelmente esse destino histórico: quem não eternizou a guerra do Vietnã pela imagem de uma menina correndo com o corpo queimada e o rosto de pânico? Outras imagens capturam segundos individuais, que entram para a pequena - contudo enorme - história cotidiana das pessoas comuns: casamentos, batizados, aniversários, férias... instantes imortalizados pela imagem. Gosto de fotografias, a bem da verdade, tenho centenas de álbuns em casa. Estão todos um pouco jogados no quarto de fundo. Às vezes, vou lá furtivamente e dou uma olhadinha no passado. Sempre que vou, prometo que no próximo final de semana arrumarei tudo: catalogarei todas as fotos, colocarei em ordem cronológica, escreverei alguma coisa atrás para lembrar de onde foi tirada - é, porque na hora de tirar eu juro que lembrarei sem recado, mas depois -... bom, fim-de-semana que vem... quem sabe? Além de elas estarem em álbuns, também andam espalhadas em porta-retratos na minha sala e no meu quarto. Faço um rodízio de vez em quando para não abusar (será normal isso ?!). Mesmo que não gostasse de fotografias, acabaria admirando a arte por influência do entusiasmo de meu filho... mas gosto da prática e do produto. O que me aborrece, às vezes, é a disseminação das máquinas digitais e a banalização das poses. Preste atenção: elas estão em todo lugar, ganharam uma popularidade tremenda. E, como dispensam o custo da revelação do antigo filme a rolo, são engatilhadas como metralhadoras... clic, clic, clic... As adolescentes adoram, não vivem sem essas máquinas pós-modernas que fotografam, armezanam e apagam imagens com uma velocidade vertiginosa. São práticas, admito. Mas tiram a poesia do olhar. São a versão "fast-food" para a arte da fotografia. Antes, corrijo, para a arte do olhar. A facilidade dessas máquinas faz as pessoas verem o mundo através de uma telinha em que é possível dar o zoom. Acho que alguns de nós andam tão absortos com a engenhosidade das câmeras digitais que pouco prestam atenção ao mundo real que há do outro lado. Recentemente, fui a São Paulo com um amigo. Foi uma viagem maravilhosa, uma imersão cultural: museus, orquestras, teatro. Passeios inesquecíveis, paisagens inesgotáveis. No primeiro dia, esquecemos as máquinas (no plural mesmo, cada um tinha a sua propriedade), mas só percebemos no retorno ao hotel; lamentamos, afinal tantas imagens haviam se perdido... No dia seguinte, levamos as duas. E registramos muitas cenas, mais de mil, sem hipérboles. E assim aconteceu no dia seguinte. Tenho várias imagens da minha viagem a Sampa: só paisagens, paisagens e gente, só gente, de perto, de longe, naturais, posadas, sérias, engraçadas. De vez em quando, olho-as no álbum. Saudosismo romântico (Ah que saudades que tenho...). Mas confesso: a imagem que permanece na minha mente como a mais intensa daquela viagem não foi eternizada por nehuma foto. Perto da Estação da Luz, entre o Museu da Língua Portuguesa e a Pinacoteca (amobos os prédios devidamente enquadrados na telinha), eu vi uma mulher dar à luz. No meio do asfalto, cercada de alguns policiais e de muitos curiosos, uma mulher negra, sem-teto, sem-chão, sem-nada, paria. Uma criança insistia em nascer. Meu amigo apressou-me, queria ainda ver outra exposição. Eu parei, extasiada diante daquela imagem... e, num lampejo, sendo meio que puxada pelo amigo, olhei mais uma vez e vi a criança nascer. Foram segundos eternizados na minha memória. Naquele momento, eu sabia, acontecera o mais formidável espetáculo que iria ver naquela cidade aqueles dias. Uma mulher pobre pariu no asfalto. Emocionada, lembrei um poema de Drummond - A flor e a náusea- em que ele fala da dureza do asfalto e das flores que insistem em nascer quebrando o concreto. No versos do poeta mineiro, tudo era metafórico, falava-se em linguagem cifrada dos regimes totalitaristas e da esperança de redemocratização. Ao ver a mulher parindo, os versos tiveram um sentido particular e eternizaram o que eu sentia. "É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio". Pronto, a imagem existe na minha mente límpida e com legenda. Não foi necessário tirar uma fotografia.