O lugar cheirava a passado. Um cheiro desagradável de passado. A organização excessiva contrastava com o ar decadente. Uma loja de aluguel de fantasias. Havia de tudo: um mosaicos de ciganas, mickeys, piratas, freiras, odaliscas - uma democrática convivência entre seres diferentes. Em um cabide, um árabe parecia desejar a baiana que se escondia atrás do vestiário. Uma barbie retrô suspirava e se oferecia a um bombeiro. Lugar de fantasias...
Entrei admirada, acanhada, assustada - confesso que senti um mal-estar estético. Entre bijuterias descascadas e máscaras de Veneza, surgiu Ela. Administrava aquele lugar, foi logo falando, há vinte anos. Ela mesma confeccionara a maioria daquelas roupas, sabia detalhes dos chapéus, das perucas, dos óculos bizarros... Pelos olhos, pela voz, pelos gestos, percebi - sem dificuldades - que era uma mulher amarga. Daquele tipo de amargura que mais comove que repudia. Disse-lhe que precisava virar cigana naquele sábado. Ela sorriu como sorriem os vendedores e me conduziu por entre os corredores. Posso jurar que ouvi gemidos, sussurros. Um pierrot parecia implorar por liberdade. Três anjos decaídos se lançaram em mim e pediram salvação. Uma espanhola triste olhava-me em silêncio: resgata-me, dizia.
Ela achou a cigana. Vestiu-me, ornamentou-me. Eu me sentia uma boneca nas mãos dela. Fitava-a enquanto ouvia as suas lamentações: estava cansada, nunca tirara férias, há anos não ia a uma festa, a um cinema... Em torno, os outros clientes faziam barulho, excitados com a diversão que estava por vir. Mas Ela não se divertia: alugava fantasias, comercializava alegria. Mas não as tinha - nem fantasias, nem alegrias. Estava presa nos seus rancores, nos seus cansaços. Levei a cigana para casa. À noite, ela era eu. A cigana dançou, gargalhou, viveu. Uma cinderela de vestido vermelho, colares, flores no cabelo... A festa acabou. A cigana ficou sobre a cadeira do meu quarto durante todo o domingo. Estava exausta de tanta vida.
Na segunda, pus a cigana em um cabide e seus adereços em uma caixa. Precisava levá-la para casa. No carro, ouvi o seu choro sentido. Leva-me para tua casa, ela me pediu. Não posso... As mão enrugadas da mulher rancorosa conferiram a cigana: procurava danos, cortes, manchas. A cigana estava intacta. As mãos rancorosas a colocaram no canto, entre colombinas sujas e zorros amassados. Despedi-me da mulher com gosto de choro na boca. Deixei aquele lugar decadente tomada pela melancolia. Entrei no carro apressada.
Enfrentei a minha rotina, uma prisão involutária a que muitos estamos presos. O pedido da cigana ecoava em meus ouvidos. A solidão da mulher apertava-me o peito. Aquelas duas até agora me perseguem. Uma, prisioneira; outra, o carrasco. São marcadas ambas pelo mesmo desejo. Liberte-me, ouço insistentemente, liberte-me...
terça-feira, 29 de maio de 2007
Assinar:
Postagens (Atom)