terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

Quem tem medo de Clarice Lispector?

Sobre minha escrivaninha, o maço de cigarros me adverte que fumar faz mal à saúde. Involuntariamente sorrio. Do lado do cigarro, há algo ainda mais prejudicial sem que haja nele qualquer advertência: um livro de Clarice Lispector. Que diabos de parâmetros são esses de acordo com os quais a nicotina é mais venonosa do que a visão lispectoriana do mundo? Ou a saúde pública não goza de capacidade de discernimento, ou não leu Clarice... Ela chegou às minhas mãos há muito tempo e sempre me assustou: sua densidade, seus mergulhos existenciais são potencialmente destrutivos e perturbadores. Mas hoje ela se reaproximou sorreteira, ressuscitada por um amigo-em-quem-me-vejo-como-um-espelho. Ah, amigo, foi maldade! Falar de Clarice reacendeu em mim um desejo meio-totalmente masoquista de me deixar arrastar pelo seu turbilhão discursivo. Estou apavorada: essa mulher era caso perdido ou perdida estou eu?... abro à revelia e em pânico uma página de seu livro."Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o risco sagrado do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade." Como posso ler isso e ir tomar sorvete como toda a gente, fingindo que não sei que isso foi escrito, com absoluta certeza, para mim. Eu tenho medo, sim, de Clarice Lispector: ela é intimidadora, como certos amigos que tenho... amigos que me fazem pegar do canto direito da terceira prateleira da minha estante o livro que é causador da minha agonia. Amigos que me fazem lembrar que viver é muito perigoso - embora o autor da frase seja G. Rosa. O que irá me sucumbir afinal: as milhares de substâncias químicas do meu cigarro ou a perigosa perspectiva da escritora ucraniana?... Acendo um cigarro, lembro de Augusto dos Anjos, outra ameaça, por causa da rima: "O beijo, amigo, é a véspera do escarro". Fumo calmamente e sem culpa, enquanto fecho o livro e o ponho fora de alcance. O estrago está feito. As feridas, expostas. Tenho contade de dizer ao meu amigo que isso não se faz... é caso de denúncia criminal. Mas já que ele o fez, o mínimo que pode me oferecer é colo... e cigarros.

4 comentários:

Anônimo disse...

Cara colega:

Não sei se uma obra de Clarice tem o poder devastador de um maço de cigarros. Ainda assim, por segurança, talvez se devesse escrever nos livros de Clarice: "O Ministério da Educação adverte: Cuidado! Ler Clarice pode ser extremamente prejudicial à saúde (ou à auto-estima)". Porém, tenho de concordar: às vezes, a dona Clarice judia. Foi ela que escreveu, por exemplo, algo mais ou menos assim: "Certas coisas é melhor não ter oportunidade de dizer; certas coisas que se tornam fatais depois que são ditas". Cruel, não é? Obrigado pelas palavras sempre tão sábias. Um abraço.

Anônimo disse...

qa tinha medo de virginia wolf, ja tinha medo de clarice lispectos. agora tenho medo de voce. Que pancada, amiga.

Anônimo disse...

nossa, q profundo.. eu tbm tenho medo dela. mto dificil de entender, até hj nao consegui terminar de ler o livro "A paixão segundo G.H.", sempre arranjo uma desculpa pra deixar pra depois... aí ele vai ficando lah na estante, abandonado... vai ver eu ainda nao tenho alma formada né? nom sei..
mas vou ler ainda.. e espero ter pelo menos um pouquinho do seu poder de interpretação =)
beijo!

Manaíra Lacerda disse...

minha pscicóloga me proibiu de ler Clarice! heuhauhueha

Faz tempo que eu não te vejo, Tereza. Sinto saudades!