- Vamos, amiga. Você vai se divertir...
Pronto. Aquela era a senha para encrencas: semre que alguém dizia isso, Ela sabia que algo bizarro aconteceria... Os amigos estavam empenhados, Ela não sabia por que, em tirá-la de casa e fazê-la se divertir. Para não ser anti-social, Ela disse "Vamos" com um frio na barriga.
Era uma festa de família. Uma grande festa: o avô da amiga completrara 90 anos, era preciso comemorar. Salão de clube, comidinhas e bebidinhas, uma banda meio decadente tocando músicas para quem faz noventa... Velhas matronas de laquê no cabelo, quarentões com cara de tédio, jovens dançando descompassadamente bolero, crianças histéricas ou sonolentas: era esse o cenário da festa. Ela lembrou-se que o seu conceito de diversão devia estar desatualizado. Mas entrou na onda: comeu, bebeu, dançou com um senhor rezando para que não fosse preciso lhe darem oxigênio ou usarem o desfibrilador no final do iê-iê-iê...
Como tinha ido de carona com a amiga, Ela esperou até o fim da festa. Eram três da madrugada quando entraram no carro. Ela, a amiga, a mãe da amiga, o irmão da amiga. Ela foi atrás com a jovem senhora. Já estava quase dormindo, quando ouviu um "Ai, meu Deus". Por causa do asfalto molhado pela chuva que assolava a cidade há dias, o carro se desgovernou. Rodopiaram na pista durante alguns segundos. Gritos histéricos rompiam o silêncio da madrugada. O carro parou. A jovem senhora e Ela estavam de cabeça baixa: não queriam ver o estrago. "Nós morremos, nós morremos", repetia a mãe da amiga. "Calma, senhora, está tudo bem", Ela dizia sem muita convicção. Ouviu o barulho de uma moto parando perto do carro. Não sabia escolher entre o alívio -era uma alma caridosa a socorrê-los - e o medo - era algum alma oportunista a assaltá-los. Ela levantou a cabeça devagar e olhou através da janela. Fechou os olhos. Abriu, olhou novamente. Definitivamente, a jovem senhora estava certa: estavam todos mortos. E no inferno! Desceu da moto jogando a sua capa para trás, num gesto teatral, adivinhem? Batmam! Na garupa, timidamente olhando a cena, o Robin. Batman gritava se todos estavam bem! Definitivamente, Ela tinha morrido. Batman ajudou todos a saírem do carro, ligou para a polícia, sugeriu chamar a ambulância. Ela riu da ironia: ambulância para mortos? Não seria mais adequado o rabecão?
Talvez fosse o sono, talvez a bebida, talvez a ansiedade despertada pelo octagenário prestes a morrer durante a balada de Roberto Carlos. Talvez fosse lentidão natural de raciocínio. O fato é que Ela demorou para entender a situação. Batman e Robin voltavam de uma festa gls que ocorrera perto do clube. Uma festa à fantasia. Passavam pelo local do acidente no momento fatídico. Batman disse a Ela, enquanto a abraçava respeitosamente, que foi "a coisa mais horrível que ele já vira: um carro rodopiava na pista e ele, impotente, nada posia fazer". Um batman impotente... não faltava mais nada. Tomadas as devidas providências (guincho, seguro, ocorrências), chamaram um táxi.Sem dúvida, a presença daquela estranho homem-morcego fora crucial no feliz desfecho da noite: Ela lhe deu um beijo de agradecimento. Viu de soslaio que Robin fez uma careta. Ainda perplexa com tudo, Ela viu Batmam chamar o parceiro e dizer-lhe que precisava de colo. Iria ter um ataque histérico. Decidida a preservar a imagem do seu herói da infância, ela entrou no táxi e encostou a cabeça no vidro, fechando os olhos. Não se lembra ao certo como chegou em casa. No dia seguinte, ligou a televisão num desses canais que passam seriados antigos. Encontrou o seu herói. Sorriu. A amiga tinha razão, afinal. Foi uma noite divertida!
terça-feira, 27 de fevereiro de 2007
terça-feira, 20 de fevereiro de 2007
Ela, a quem falta ousadia
Ensaiava o gesto com freqüência em seus momentos de devaneio. Tocaria em sua mão levemente. Ou acariciaria o seus cabelos. Ou então, com o dorso da mão, pecorreria sua barba por fazer. Depois, com gentileza e ousadia, beijaria e sua boca. Achava que não seria necessário nada dizer, mas diria algo desnecessário: "Gosto de você, amigo." O gesto estava ensaiado, a fala mais ou menos memorizada. A gentileza, Ela naturalmente tinha. Faltava-lhe - oh, desgraça - faltava-lhe a ousadia.
Eram amigos, confidentes. As conversas que tinham eram invariavelmente longas e de uma dualidade mágica: alternavam trivialidades com filosofia, fofocas com catarses. Tinham lido os mesmos livros, gostavam das mesmas músicas, padeciam do mesmo gosto pela solidão. Eram amigos. Um dia, Ela o olhou de modo diferente. Deteve-se no contorno dos seus lábios, observou suas mãos, sentiu sua pele quando o abraçou. Desejou aquele homem como não se deseja um amigo. Assustada, Ela sentiu seu coração aos pulos, sua respiração ofegante. Teve vontade de abraçá-lo. Não, teve vontade de ser abraçada por ele. Um abraço lento, intenso, não-casto... Mas o ouviu dizer "oi,amiga" e se lembrou: eram amigos.
Aquele dia desencadou nela um total desconcerto. Aquele era um homem proibido: tinha uma companheira, parecia amá-la. Aquele homem a fazia repetir o padrão dos amores difíceis. Ainda assim, desejava-o. Esperava uma oportunidade para lhe dizer isso. Poderia ser rejeitada, poderia ser amada. Precisava ser sincera, afinal não é isso que os amigos fazem? As longas conversas continuavam. Frivolidades e Nietsche. Ela sentia seu corpo tremer. Fofocas e Sartre. Ele sorri displicente. Pão-de-queijo e Schopenhauer. Ela focaliza sua boca. Ela ensaia o gesto. Maldita ousadia...
Eram amigos, confidentes. As conversas que tinham eram invariavelmente longas e de uma dualidade mágica: alternavam trivialidades com filosofia, fofocas com catarses. Tinham lido os mesmos livros, gostavam das mesmas músicas, padeciam do mesmo gosto pela solidão. Eram amigos. Um dia, Ela o olhou de modo diferente. Deteve-se no contorno dos seus lábios, observou suas mãos, sentiu sua pele quando o abraçou. Desejou aquele homem como não se deseja um amigo. Assustada, Ela sentiu seu coração aos pulos, sua respiração ofegante. Teve vontade de abraçá-lo. Não, teve vontade de ser abraçada por ele. Um abraço lento, intenso, não-casto... Mas o ouviu dizer "oi,amiga" e se lembrou: eram amigos.
Aquele dia desencadou nela um total desconcerto. Aquele era um homem proibido: tinha uma companheira, parecia amá-la. Aquele homem a fazia repetir o padrão dos amores difíceis. Ainda assim, desejava-o. Esperava uma oportunidade para lhe dizer isso. Poderia ser rejeitada, poderia ser amada. Precisava ser sincera, afinal não é isso que os amigos fazem? As longas conversas continuavam. Frivolidades e Nietsche. Ela sentia seu corpo tremer. Fofocas e Sartre. Ele sorri displicente. Pão-de-queijo e Schopenhauer. Ela focaliza sua boca. Ela ensaia o gesto. Maldita ousadia...
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